Postagens populares

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A bíblia e a civilização (moderna)


     Se formos levar a sério o Deus da Bíblia, devemos admitir que Ele nunca nos dá a liberdade para seguiros mandamentos dos quais gostamos e negligenciar os demais. Ele tampouco nos diz que podemos relaxar nas penalidades que Ele impôs por desrespeitá-los. (mas é exatamente isso que os crentes moderno/liberais fazem quando desprezam as partes "ruins" da bíblia e se apegam somente às partes "boas")

     A ideia de que a Bíblia é o guia perfeito para a moralidade é simplesmente espantosa em vista do conteúdo do livro. Não há dúvida de que o conselho de Deus para os pais é direto e claro: sempre que os filhos saem da linha,devemos bater neles com uma vara ( Provérbios 13,24; 20,30; e 23,13-14). Se eles tiverem a pouca- vergonha de nos responder com insolência, devemos matá-los (Êxodo 21,15, Levítico 20, 9, Deuteronômio21,18-21, Marcos 7, 9-13, Mateus 15, 4-7) Também devemos apedrejar pessoas até a morte por heresia, adultério, homossexualismo, por trabalhar no sábado, adorar imagens, praticar feitiçaria e mais uma ampla variedade de crimes imaginários. 

Muitos cristãos acreditam que Jesus acabou com toda essa barbárie, e pregou uma doutrina de puro amor e tolerância. Mas não foi assim. Em vários pontos do Novo Testamento se pode ler que Jesus confirmou integralmente a lei do Velho Testamento.

Porque em verdade vos digo até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois,que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.
Mateus 5, 18-20 

     Os apóstolos repetiram várias vezes esse tema (por exemplo, veja 2 Timóteo 3, 16-17). É verdade, claro,que Jesus disse coisas profundas sobre o amor, a caridade e o perdão. A Regra de Ouro é realmente um preceito moral maravilhoso. Mas numerosos mestres já deram essa mesma orientação séculos antes de Jesus (Zoroastro, Buda, Confucio,Epicteto...), incontáveis escrituras discutem a importância do amor que transcende o próprio eu de maneira mais articulada do que a Bíblia, sem serem maculadas pelas obscenas celebrações de violência que encontramos em abundância tanto no Velho como no Novo Testamento. 

     Se você acha que o cristianismo é a expressão mais direta e pura de amor e compaixão que o mundo já viu, é porque não conhece bem as outras religiões.
    
      Mahavira, o patriarca jainista, superou a moralidadeda Bíblia como uma única frase: 

     “Não ferir, abusar,oprimir, escravizar, insultar, atormentar, torturar ou matar nenhuma criatura ou ser vivo”. 

     Imagine como o nosso mundo poderia ser diferente se a Bíblia contivesse essa frase como preceito central. Os cristãos abusaram, oprimiram, escravizaram,insultaram, atormentaram, torturaram e mataram pessoas em nome de Deus durante séculos, com base em uma leitura teologicamente defensável da Bíblia.
Como, então, você pode argumentar que a Bíblia oferece a expressão mais clara de moralidade que o mundo já viu?

     Se é verdade que os missionários fazem muitas coisas nobres, com grandes riscos para si mesmos,o fato é que seu dogmatismo dissemina a ignorância e a morte. Em contraste, voluntários de organizações seculares, como a Médicos Sem Fronteiras, não desperdiçam tempo algum falando com as pessoas sobre o nascimento virginal de Jesus. Tampouco dizem à população da África subsaariana - onde quase 4 milhões de pessoas morrem de AIDS a cada ano — que é pecado usar camisinha. Sabe-se de casos em que missionários cristãos pregaram que usar preservativo é pecado, em localidades onde não há nenhuma outra informação acerca do assunto. Esse tipo de crença é genocida. 

     Também podemos nos perguntar, de passagem, o que é mais moral: ajudar as pessoas puramente pela preocuparão com o sofrimento delas, ou ajudá-las porque você acha que o criador do universo vai recompensá-lo por isso?

     Embora você acredite que acabar com a religião é um objetivo impossível, é importante perceber que ele já foi alcançado por boa parte do mundo desenvolvido. Noruega, Islândia, Austrália, Canadá, Suécia, Suíça,Bélgica, Japão, Holanda, Dinamarca e o Reino Unido estão entre as sociedades menos religiosas da Terra. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2005), essas sociedades também são as mais saudáveis, segundo os indicadores de expectativa de vida, alfabetização, renda per capita, nível educacional, igualdade entreos sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil. 

     Os EstadosUnidos são o único país, entre as democracias ricas,com alto nível de adesão à religião; e também o que mais sofre com altos índices de homicídio, aborto,gravidez adolescente, doenças sexualmentetransmissíveis e mortalidade infantil. 

     Os países com altos níveis de ateísmo também são os mais caridosos, em termos da porcentagem de sua riqueza que dedicam a programas internos de bem estar social e ajuda aos países pobres.  (www.globalissues.org/TradeRelated/Debt/USAid.asp#ForeignAidNumbersinChartsandGraphs;www.oecd. org)

     Religiosos liberais e moderados em vez de dizer que acreditam em Deus porque determinadas profecias bíblicas se realizaram,ou porque os milagres narrados nos evangelhos são convincentes, costumam falar nas boas consequências de se acreditar, tal como eles acreditam. Esses crentes muitas vezes dizem que acreditam em Deus porque isso “dá sentido às suas vidas”. 
     
     Quando um tsunami matou centenas de milhares de pessoas no dia seguinte ao Natal de 2004, muitos cristãos conservadores viram nessa catástrofe uma prova da ira divina. Aparentemente, Deus estava enviando mais uma mensagem em código sobre os males do aborto, da idolatria e do homossexualismo.

     A teologia da ira tem muito mais imérito intelectual. Se Deus existe e tem um interesse nos assuntos dos seres humanos, sua vontade não é inescrutável. Aqui a única coisa inescrutável é que tantos homens e mulheres, que em outros aspectos são racionais, conseguem negar o horror implacável desses acontecimentos e julgar que esse é o ápice da sabedoria moral.

     Nós decidimos o que é bom no “Bom Livro”. Lemos a Regra de Ouro e achamos que ela desfila, de maneira brilhante, muitos de nossos impulsos éticos. E, em seguida, encontramos mais um dos ensinamentos de Deus sobre a moral: se um homem descobrir, em suanoite de núpcias, que sua noiva não é virgem, ele develevá-la até a soleira da porta do pai dela e apedrejá-laaté a morte (Deuteronômio 22,13-21). 
Se somos civilizados, rejeitaremos isso como o ato mais lunático e mais vil que se possa imaginar. Mas para isso precisamos exercer nossa própria intuição moral. Acreditar que a Bíblia é a palavra de Deus não nos ajuda de maneira alguma.

     Já é hora de reconhecermos que é uma verdadeira desgraça que os sobreviventes de uma catástrofe acreditem que foram poupados por um Deus amoroso, enquanto esse mesmo Deus afogava bebês em seus berços.  Já é hora de reconhecermos o ilimitado narcisismo e auto-engano desses que foram salvos.

     E claro que pessoas de todas as religiões sempre garantem umas às outras que Deus não é responsável pelo sofrimento humano Mas, então, como compreender a afirmação de que Deus é, ao mesmo tempo, onisciente e onipotente? Esse é o problema antiquíssimo da teodiceia, é claro, e devemos considerá-lo solucionado. Se Deus existe, ou Ele não pode fazer nada para impedir as mais terríveis calamidades, ou então Ele não tem interesse nisso. Portanto, ou Deus é impotente, ou então é mau. Você pode agora ser tentado a executar a seguinte pirueta: 

     Deus não pode ser julgado pelos critérios humanos de moral. Mas já vimos que os critérios humanos de moral são exatamente aqueles que você utiliza para afirmar a bondade de Deus. E qualquer Deus que se preocupe com coisas tão triviais como o casamento gay, ou o nome pelo qual Ele deve ser chamado nas orações, não é tão inescrutável assim.

Do livro: "Carta a uma nação Cristã" - Sam Harris