Texto retirado do livro “CRIAÇÃO IMPERFEITA”
de Marcelo Gleiser
Inúmeros
artigos e livros científicos declaram algo assim: “Os valores das constantes
fundamentais da Natureza definem como o Universo opera (verdade). Se fossem
ligeiramente diferentes, digamos, se a carga do elétron fosse 20% maior, ou se
os nêutrons não fossem 0,13% mais
pesados do que os prótons mas um pouco mais leves, tudo seria diferente. Em
particular, estrelas não brilhariam e talvez nem existissem, e a vida seria
impossível (verdade). Portanto, se os valores das constantes fundamentais da
Natureza diferissem por apenas um pouco, não estaríamos aqui (verdade). Não é incrível
como o cosmo é tão ‘certo’ para que a vida exista? (falso)”.
A existência (e
os valores) das constantes fundamentais da Natureza reflete o método com que
construímos explicações do mundo que nos cerca.
Não existe qualquer
evidência de que o nosso Universo seja “certo” para a vida. Ao contrário, evidência
que temos aponta na direção oposta, para a raridade da vida, que existe apesar
da indiferença e da hostilidade cósmica.
Afirmar que o
Universo é “certo” para a vida implica uma agenda bem específica: o Universo é
do jeito que é para que possamos estar aqui. Essa posição implica que a vida, e
particularmente a vida inteligente, tem uma importância cósmica. Temos uma
missão ditada pelo próprio Universo!... Como aceitar que tudo isso seja um mero
acidente, que nossa existência não tenha um propósito maior?
Não há dúvida
de que essas ideias são inspiradoras....Infelizmente, essas ideias não têm a
menor evidência observacional.
Deixe-me
elaborar essa questão através de uma analogia. Um dia, uma pessoa entra numa
biblioteca. Essa pessoa só sabe ler e escrever em português. Examinando as
estantes, se empolga ao descobrir que todos os livros sejam em português. “Não
é incrível que todos os livros nessa biblioteca são em português? Se fossem em
outras línguas, ou se algumas letras fossem trocadas aqui e ali, digamos, as
letras ‘a’ e ‘e’ por caracteres japoneses, eu não poderia mais ler nenhum
desses livros. Esta biblioteca é a ‘certa’ para mim, construída só para que eu
possa aproveitar todas essas belas obras. Eu devo mesmo ser muito importante!”
... Nessa
analogia, a biblioteca representa nosso Universo, com seus observadores (isto
é, leitores) inteligentes “típicos”, sejam eles terrestres ou alienígenas.
...
Para um peixe
inteligente, a água é “certa” para ele, funcionando como deve para que possa
nadar nela. Se fosse muito fria, congelaria; muito quente, ferveria. A
temperatura tem que ser “certa” para que o peixe exista. “Veja só como sou
importante! A própria água é do jeito que é só para que eu possa nadar nela.
Minha existência não pode ser um acaso.”, concluiria o peixe, orgulhoso. Porém,
sabemos que a temperatura dos oceanos não está sendo controlada com o propósito
de permitir a existência do nosso peixe. Ao contrário, o peixe é extremamente frágil.
Uma mudança brusca ou mesmo gradual da temperatura o mataria, como todo
pescador de trutas sabe muito bem. Precisamos tanto encontrar conexões que justifiquem
nossa existência, que as achamos mesmo quando não existem.
Somos seres
espirituais em um cosmo brutal e indiferente. Para mim, essa é a essência da
problemática humana. Um dos erros mais graves que podemos cometer é acreditar
que o cosmo tem planos para nós, que, de algum modo, somos importantes para o Universo.
Somos, sim, especiais, mas não porque o cosmo tenha planos para nós, ou porque
seja “certo” para a vida.
Não consigo encontrar
a mensagem de que o Universo é “certo” para a vida nesse vasto oceano de mundos
desolados. Se o cosmo tinha mesmo planos para nós e para a inteligência cósmica
em geral, me parece que a execução desses planos andou mal.
... uma vez que
fique claro quão rara é a Terra, quão rara é a vida complexa, quão precária e
preciosa é a nossa existência num planeta flutuando em meio a um Universo
hostil e indiferente, um número cada vez maior de pessoas abracem a causa pela
sobrevivência. Talvez, um dia, nossa missão seja espalhá-la pelo Universo
afora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário